domingo, 18 de julho de 2010

Coleção transforma obras clássicas em tristes arremedos literários

O Globo, 03/07/2010 - por Wilson Alves-Bezerra *

Há um divertido conto do húngaro Dezsö Kosztolányi (1885-1936) que conta a história de um cleptomaníaco que se torna tradutor. Ao traduzir o primeiro romance para o húngaro, ele compulsivamente subtrai lustres, joias, janelas e outros objetos de valor da obra original. Perfeito seria o crime se o leitor, supostamente não proficiente na língua do autor, de fato não pudesse ir ao original e comprovar o que lhe foi furtado.

Tal conto nos traz alguns elementos para pensar sobre a coleção É só o começo, da L&PM. Com nove títulos publicados, de autores como Shakespeare, Cervantes, e os brasileiros Machado de Assis, Lima Barreto, Aluísio de Azevedo, entre outros, ela oferece edições com “linguagem adaptada para um público específico”, o que ela chama de “neoleitores”. O alvo são estudantes até a oitava série. O pressuposto é que o “neoleitor” não teria condições de ler os originais e que é preciso “facilitar a leitura”.

Há algo inquietante na facilitação vir justamente no momento em que os leitores estão em formação. A regulação da iniciação literária dos jovens proposta pela coleção parece desconsiderar a possibilidade da paixão literária, o arrebatamento de um primeiro amor juvenil, que poderia advir do contato com um grosso volume de uma biblioteca alheia — seja ela a da escola, da família, ou de um sebo. A brevidade e a simplicidade das versões adaptadas parece postergar para um momento incerto o contato efetivo com a literatura, como se primeiro fosse preciso “aprender a aprender a ler”, para só depois ler de fato. É a impressão que causa a edição infestada de notas de vocabulário , geografia, história, indicações de sites e filmes; com isso, o literário fica em segundo plano e o livro se torna fonte de informações enciclopédicas.

Desconsiderando a hipótese da paixão pela literatura, a coleção rege-se antes pelo princípio de amor médico, higiênico de que mais prudente é contratar uma preceptora para as primeiras letras do jovem, para evitar que ele se depare com coisa pior pela rua (como o amor, o desejo). Num primeiro momento, seria de se comemorar uma edição pedagógica de Romeu e Julieta que permite que o jovem leitor tenha acesso ao dramaturgo inglês. Mas , olhando de perto, vê-se que da peça de Shakespeare o adaptador furtou o teatro e a poesia, o encanto da linguagem, a agilidade dos diálogos. Furtou-nos Shakespeare sem deixar dele rastro que pudesse seduzir o jovem leitor para aventuras futuras.

O paradoxo é que mesmo autores de escrita fina e cativante, simples em seu tempo, e em nosso, como Lima Barreto, têm que atravessar o moedor da adaptação, vendo empobrecerem-se sua ironia e humor. Além disso, o texto do mestre carioca é dotado na versão "neoleitoril" de um discuros pedagógicos, de todo inexistente no original. Assim, autores tão distintos como o que podem ser Shakespeare e Lima Barreto foram achatados a um estilo médio, de um vocabulário que não excede a duas mil palavras, condensados e livres de peculariedades de estilo e que, em quase nada, nos lembram o original. Por que é que uma coleção que diz apostar na iniciação literária deita fora o que há de mais importante na experiência da leitura: o confronto com uma linguagem que não se confunde com a do dia a dia, e oferece ao leitor um convite à descoberta?

Antonio Candido, num texto fundamental "A literatura e a formação do homem" (1972), lembra-nos das agruras dos jovens insones, noite adentro, sob o impacto das obras como as de Aluízio de Azevedo. E diz que a literatura forma o homem não no sentido rasteiro de uma pedagogia do bem-viver, mas no sentido alto de confirmar-lhe a humanidade, com suas agruras e contradições. Assim pedagogizada, as primjeiras experiências literárias ficam como que formatadas ao protocolo da leitura obrigatória, instrutiva e desinteressante. A coleção É só o Começo caiu na sedução popularesca da facilitação de acesso a alguns clássicos brasileiros e ocidentais, mas tornou-os um triste arremedo literário que subestima o jovem leitor.

* Wilson Alves Bezerra é professor de Departamento de Letras da UFSCar, tradutor e escritor.

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