sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Guardador de palavras

Olá, Peter

Aceite esta lembrança de meus desejos de um Feliz Ano Novo e Bom Natal. Agradeço às suas boas palavras para o Pele dos Livros. Divirta-se com a história e receba um abraço da

Regina Gulla



Guardador de Palavras (Ou Fazedores de Livro)


Tem muitos jeitos de escrever, por aí.

O Pinote, meu cachorro, escreve no poste: “Este lugar é meu”. Ele não precisa de tinta, escreve com xixi mesmo.

Os passarinhos escrevem com as asas direto no céu. São muito espertos: o céu é uma página que não acaba nunca.

Tem passarinho que escreve bilhete, aviso, convite, escreve com o trinado tudo que precisa dizer. Lá longe, os outros entendem o recado e vão todos se encontrar na festa.

As folhas das árvores escrevem a notícia para o vento ler. E o vento conta para todos da floresta onde é melhor fazer o ninho depois de namorar.

A tartaruga escreve na areia: “Só vim aqui para desovar, eu moro mesmo é na água”.

A galinha daqui de casa escreve no terreiro: “Cadê a minhoca, cadê a minhoca?”. A minhoca dá uma resposta retorcida: “Não amola, estou escrevendo um túnel”. Ainda bem que túnel é bem enterrado, senão a galinha ouvia e a minhoca já era.

Já o surfista, escreve na água. Mas não dá nem tempo da gaivota ler, a onda vem e apaga, depressinha. Será que as ondas guardam na memória do mar tudo o que o surfista vai escrevendo?

E os navios, os barcos, os veleiros, costumam ler os diários do mar? Para mim, o mar é um livro molhado, do começo ao fim.

Na minha família? Aqui todos preferem ler nos livros. Livrão, livrinho, poema, continho, tudo que passa pela mão vai direto para os olhos, até bula de remédio a gente lê, inteirinha.

Só minha avó é que prefere outra leitura: vive lendo nos nossos olhos um medo, uma dúvida, uma felicidade.

Pintor escreve sobre os sentimentos da gente, com pinceladas de tinta. Sobre a tela, sobre papel, pano, até em parede. A côr amarela dos pintores diz muito da alegria; o azul conta sobre as ternuras; o vermelho, nossa!, tem muita história de paixão pra contar; no lilás a gente pode ler coisas que falam da paz.

Mas carroça é que é engraçado. As carroças escrevem na terra. E o sol tem muito tempo para ler as histórias escritas pelas rodas de madeira. Tem também luz suficiente para enxergar as letras sulcadas na página da estrada.

Antigamente, os homens escreviam na pedra: “Olha só o bisão que eu acabei de caçar”. E todos iam correndo ler o bisão. Então comiam (não comiam o escrito, comiam a caça).

Depois, encontraram um jeito melhor: faziam as páginas com barro. Mas nem por isso as histórias eram sujas. O peso era tanto, que devia dar uma bela dor nas costas.

Teve gente que inventou de escrever em caule de planta, o papiro. De martelada em martelada, a planta se esticava feito página.

Outros inventaram de escrever em couro de bicho: o pergaminho. No pergaminho, as histórias eram bem enroladas.

Acontece que antes de tudo isso, o jeito de contar histórias era sem escrever nada. Contavam as coisas proseando, falando um com o outro. Também, com um punhadinho de gente no mundo, era só um falar, todos escutavam. Assim como faz o meu avô, quando passa aqui em casa para uma prosinha com café enquanto vai me contando essas coisas. Coisas que leu nos livros.

Depois, o mundo foi se enchendo de gente e... Como é que se podia contar uma história, para tanta gente, de uma vez só?

Foi aí que tiveram de inventar os livros.

Livro?

Para mim, livro é um guardador de palavras, dos melhores que já se inventou. Primeiro alguém escreve. Em seguida, pede para outra pessoa ler. Se essa outra pessoa for um fazedor de livro, ela vai preparar o livro como a gente costuma preparar os presentes: escolhe artista para encontrar a melhor letra, a capa, dá o formato mais bonito que encontrar, para a história poder chegar na gráfica muito bem guardada. E assim, termina num objeto que cabe na mão de qualquer pessoa. Mil livros, copiados de uma vez só. Milhão, até.

Assim é que vão chegando os livros, até esse tanto de gente que vive hoje no planeta Terra. A história chega para todo o mundo, guardada fresquinha, em páginas. Para a gente abrir, entrar nela, viajar por mundos onde só se chega lendo.

As vozes que a gente escuta nos livros são feitas de letras, de palavras, de frases. Para ser ouvido, o escritor tem de imaginar que a gente está bem pertinho dele, todos sentados em volta da fogueira, quando ele escreve.

É assim que eu estou escrevendo agora. Com caligrafia. Resolvi escrever porque no meu prédio não mora criança e eu não tenho para quem contar nada. Nem com quem dançar nada, nem tenho com quem cantar (cantar, por acaso, não é um jeito de escrever no ouvido de alguém?).

E quando eu saio na janela para soltar a minha voz, que vive presa na garganta, os vizinhos me mandam calar a boca porque estão cansados e precisam assistir TV.


Regina Gulla
18 de dezembro de 2007

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